A REINVENÇÃO DO NOSSO MODO DE SER HUMANO

           Hoje, a expectativa de vida da humanidade é de aproximadamente 75 anos. E uma vez vivendo, em média, tanto tempo, surgiu uma questão filosófica central, que é “como viveremos?”. Assim, aquela velha questão de quantidade (quanto viveremos) já não nos inquieta tanto, mas, agora, o motivo da inquietude reside na qualidade, no como viver dignamente em coletividade esse período existencial majorado. Porém, e infelizmente, a realidade tem demonstrado que temos falhado gravemente nessa missão.

                Por isso, a mínima reflexão sobre o mundo em que vivemos nos faz concluir que estamos nos conduzindo mal, que estamos humanamente distantes uns dos outros, vivendo, ademais, sob a égide da velocidade (no amor, nas amizades, nos estudos...). Tudo é veloz. Tudo é prático. Poderíamos dizer que a humanidade está submetida a uma espécie de tacocracia, isto é, uma “ditadura da rapidez”, como diria o filósofo Mário Cortella. E essa rapidez, essa praticidade, nos tem feito perder uma das grandes virtudes da vida: a paciência. E sem a paciência para o convívio com o outro, o nosso relacionamento, que é intrinsecamente social, está em declínio, caracterizado pela frieza, pelo desinteresse, pela automação dos atos, etc. Estamos, de fato, cada vez menos humanos. E isso precisa mudar.

Até a poucas décadas tínhamos paciência. Mas ela vem se esvaindo ante a uma tecnologia que perdeu a sua natureza ferramental e, o pior, se elevou, transformou-se em algo necessário (ao invés de útil), refletindo nessa mudança brusca do comportamento humano. E uma das tecnologias que nos mudou rapidamente foi a invenção da televisão.

Quando não existia a televisão, a família se sentava para almoçar e jantar junta, eles conversavam, as poltronas eram voltadas umas para as outras a fim de que eles se vissem. Quando os pais chegavam do trabalho os filhos os abraçavam. Havia gratidão por tudo, pelo lar, pela comida, pelos presentes, pelo amor. Às vezes, acontecia de chegar algum vizinho, que era sempre bem vindo, então se passava um café, assava-se um bolo e nisso acontecia o (distante) convívio entre seres humanos em sociedade.  Aí inventaram a televisão. A família, que antes se reunia para conversar, agora se punha emudecida de frente àquela “caixa de som com imagens”. A conversa durante o programa passou a ser motivo de reprimenda. A concomitância de programas em canais diferentes trouxe o conflito entre os familiares. A solução era uma televisão em cada cômodo, aumentando ainda mais o distanciamento entre eles. O vizinho, que até então era bem recebido, passou a ser estorvo quando das suas visitas.

A televisão tornou-se a mais poderosa ferramenta de comunicação em massa. Trouxe consigo os comerciais e foi ganhando corpo, atingindo milhares ao mesmo tempo, interferindo na vida delas, ditando moda, influenciando, e até determinando, comportamentos. E, assim, fomos nos deixando dominar pela televisão, até chegarmos ao ponto de acharmos tudo muito normal: não sair de casa, não saber o nome dos vizinhos mais, não comer em família, não conversar sobre o dia-a-dia, etc. Tudo normal. Mas não é! E nunca será normal!

E aí veio o controle remoto. Antes para mudar de canal era preciso se levantar, ir lá, mudar o canal, voltar e sentar. Se não estava bom o programa, tinha que ir lá de novo. Às vezes, se assistia alguma coisa por simples comodidade, isto é, preguiça. Até que apareceu o controle remoto, e, a partir de então, um simples toque num botão e pronto. Simples, fácil e prático. E para conquistar o consumidor (ávido por novidades) veio a “TV a cabo”. Hoje com mais de 80 canais! O cidadão pega o controle e vai “tuf, tuf, tuf”, zapeia, vai até o 80 e volta, e depois, frustrado, comenta: “Mas não tem nada que presta nessa TV!” Como assim? No que nos transformamos? Alguma coisa está muito errada, você não acha?

Outra tecnologia que tirou a nossa paciência foi a câmera fotográfica digital. A máquina com filme educava a nossa paciência, tinha um número limitado de fotos, era preciso fazer “a melhor pose” porque era algo que “ficaria para sempre”, aí se tirava a foto, levava-se a um estúdio e aguardava-se a revelação. Era um processo de dias; havia um tempo de esperar as coisas acontecerem. E agora? Com uma câmera digital basta um clique e está lá o resultado numa telinha colorida. Se ficou boa, bem, se não é só tirar outra. Simples, fácil, prático. Tão ligeira quanto a nossa paciência sendo deseducada...

Há uns 15 anos, numa família comum, o telefone tocava, a mãe atendia e se do outro lado alguém perguntava se o filho dela estava, ela então perguntava quem estava falando, onde morava, se estudavam juntos.... Isto é, o telefone fixo fazia, inclusive, a mediação entre os amigos dos filhos e os pais. Havia um acompanhamento próximo dessas amizades. Era mais seguro e menos preocupante. Mas, e agora? Agora qualquer um pode ligar para os nossos filhos, onde eles estiverem, a qualquer hora, sem que saibamos. Aliás, a menos que se utilize um GPS, hoje não se dá para saber onde os filhos estão, porque eles são móveis, como os celulares. Há 15 anos se sabia onde eles estavam, porque eles tinham que estar fixo, que nem o telefone. Agora eles enganam.

O que isso mudou? Mudou muito! Boa parte dos pais não sabem com quem os filhos andam, onde eles estão, com quem estão. E ainda tem pais que dizem “não quero saber de meninada aqui em casa!” ou “não quero saber de moleques aqui!”. Aí, sim, é que esses pais não vão saber mesmo quem são essas pessoas. Vão descobrir, se der tempo, em algum momento e de alguma forma que pode ser traumática.

Outro sinal de “modernidade” desses “novos tempos” é o tal “drive-thru”. Que, em outras palavras, se traduz como sendo uma “casinha”, onde a gente entra com o carro, fala com o atendente (ou uma máquina), dá a volta, paga, recebe um saco de comida (não é só cachorro que se alimenta assim mais), um copo de bebida e sai de carro, falando ao celular, guiando, comendo e bebendo, tudo ao mesmo tempo. Diz que é para “ganhar tempo”. Tempo para...?

Então a tecnologia é um mal? Ela deve ser descartada? É isso? Não! Jamais! Ela não pode é nos submeter, nos dominar, nos afastar. Ela deve ser usada com consciência, com prudência e até limitação, de forma que a nossa relação interpessoal tenha sempre prioridade ante as máquinas. É preciso, sim, mudar essa sociedade do imediato. É preciso que resgatemos nossa paciência. As coisas estão assim, mas não deveriam estar. Não podemos nos omitir, buscando o prático ao invés do certo. Pois nem tudo que é prático é certo. Colar ao invés de estudar é prático, mas não é certo. Seguir na contramão é prático, mas não é certo, e assim por diante.

A questão é clara: algumas coisas na vida é melhor começar cedo, antes que seja tarde. E uma delas é exatamente essa reinvenção do nosso modo de ser humano. Já entendemos há muito tempo que o mesmo humano que é capaz da beleza é capaz do horror. Que o mundo é, em grande parte, produto de nossas ações, de nossas escolhas. Esse é um momento de escolhas e nós temos que fazê-las. Temos que criar gerações que façam escolhas corretas, que não sejam predatórias. Afinal, “o mundo que nós vamos deixar para os nossos filhos depende muito dos filhos que nós vamos deixar para esse mundo.”

Portanto, como viveremos? Voltaremos a ser mais humanos um dia? Realmente não dá para predizer. Mas dá, sim, para participar da construção desse sonho. E quanto mais gente tiver sonhando com isso mais forte estaremos nessa jornada, caminhando unidos na mesma direção. Alguém tem que fazer alguma coisa. Aqui estamos.

Luciano Caettano

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